Na hora da decisão: José Serra

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Mesmo sendo uma revista de tiragem mais espaçada e com matérias bem elaboradas e nada a ver com as chamadashardnews, a piauí não deixa de tratar de temas atuais e cobrir com apurada sensibilidade aspectos de grandes eventos. Sendo assim, a cada época de eleição presidencial, alguns assuntos são escolhidos para estampar as páginas da publicação e, dentre eles, tem destaque uma análise dos candidatos (ou possíveis candidatos) à Presidência da República.

Não foi diferente em 2009, ano que precedeu as eleições que consagraram Dilma Roussef como a primeira mulher a presidir a República brasileira. Por meio do perfil do principal concorrente de Dilma na época, José Serra, vemos traçado uma personalidade forte e peculiar. Diferentemente do caso de Fernando Henrique Cardoso, em que o próprio entrevistado domina as descrições, o perfil aqui analisado foi composto por diversas entrevistas, de pessoas de diferentes círculos sociais de Serra, que também foi ouvido.

Mas qual a motivação para a realização desse relato? Os candidatos a presidência estavam prestes a ser anunciados e Serra era um dos nomes possíveis do PSDB, assim como Geraldo Alckmin. O texto definitivamente não é um exemplar de propaganda eleitoral, uma vez que mostra características nem sempre positivas de José Serra. Mesmo que também haja passagens nas quais os entrevistados tentam construir uma imagem “perfeita”, “adequada”, “politicamente correta” para o candidato, a autora consegue usar dessas falas um instrumento de ironia para reforçar uma imagem negativa do pré-candidato.

Exemplo claro é a entrevista com Teresa e Bidu, tia e prima, respectivamente, de Serra. Esta conta as peripécias  do primo desde a infância e é constantemente podada pela mãe, que nega qualquer ponto negativo mesmo que banal do candidato. Teresa é só elogios ao sobrinho. Ela finaliza falando “Ele é assim: ajuda todo mundo. Em doença, então, nem se fala. Compra tudo com o dinheiro dele. Mas emprego, ele não dá, não.”, em referência clara a prática do nepotismo, afastada, nesse caso, do caráter do sobrinho.

No perfil, fica claro que uma característica forte na personalidade de Serra é a implicância, aspecto que Daniela Pinheiro faz questão de ressaltar e exemplificar. Todos os entrevistados da jornalista, exceto os familiares, relataram essa antipatia. Daniela ressalta que Serra faz questão de deixar suas implicâncias evidentes, enquanto os outros políticos as silenciam. O que poderia mostrar um traço combativo positivo acaba por acentuar o caráter negativo de sua temosia, já que o parágrafo é terminado com “tem juízos taxativos e se esforça longamente – às vezes mais do que o razoável – para que sua opinião prevaleça, mesmo em assuntos fúteis.”

Além da marcante implicância, outros aspectos da personalidade de Serra também são narrados por outros personagens. João Sayad, secretário de Cultura do Estado na época da entrevista, afirmou que o José Serra é tímido, embora não se fale muito sobre isso. O secretário conclui: “Imagine só, um candidato à Presidência ter vergonha assim”. Reforçando essas características “inusitadas” Verônica Allende, filha de Serra, diz que “o pai tem uma imagem pública bem diferente da privada e que ele não é um entertainer, é um ser público puro”, uma engraçada oposição ao presidente da República na época, Luis Inácio Lula da Silva, considerado grande líder carismático.

A opinião sobre o posicionamento econômico do pré-candidato é exposta na entrevista com João Manuel Cardoso de Mello, um dos idealizadores do Plano Cruzado do governo Sarney. Segundo ele, Serra tem uma visão fiscal ortodoxa, que o impede de ver, por exemplo, o custo social que uma greve gerada por falta de reajuste salarial pode trazer em detrimento à harmonia das contas públicas. Cardoso de Mello também compara inusitadamente  Serra e Dilma. Para o economista, que foi professor da faculdade da petista, “eles são muito parecidos, se houvesse uma reorganização política, ele estariam no mesmo partido”. Isso leva o leitor a pensar que há algo errado, uma vez que os dois estão em partidos adversários, e, teoricamente, ideologicamente diferentes. Remete até a antiga, mas não obsoleta, expressão “farinha do mesmo saco” usada desde os tempos do Império na política brasileira e que se refere a falta de contraste entre os partidos ditos adversários no plenário brasileiro.

Mais um reforço na imagem de antipatia relatada no perfil de Serra é sua obsessão pela limpeza das mãos. Com uma garrafa de álcool em gel sempre ao seu alcance, o pré candidato lança a ideia de que tem uma certa ojeriza do popular, de tudo que é público. Apesar disso, é citado no perfil que essa imagem de aversão de Serra só é concretizada na classe média, ao contrário do que se poderia pensar.jose serra

O AUTOR E O TEXTO

Os textos vinculados na Piauí tendem a sair da estrutura normal de uma reportagem, por conter aproximação explícita com o entrevistado, ser bastante descritivo e subjetivo, aspectos que aproximam as matérias ao New Journalism.

Daniela construiu o texto alternando as entrevistas, chegando até a intercalar trechos da mesma entrevista. O leitor caminha pelo texto muitas vezes em ziguezague, já que uma hora está lendo o que Bidu e Teresa falam, entretanto no parágrafo seguinte “entra” no carro em que a jornalista está com Serra, onde ele fala  o que achou a  interpretação de Daniel Day-Levwis em Sangue Negro. Em outra passagem, tia e prima voltam a aparecer no texto.

Todas as entrevistas são narradas com precisão de detalhes que vão desde o agradecimento do café trazido pela empregada por FHC até a mania de passar álcool em gel na mão todas as vezes que entra no carro ou no avião.  O recorrente uso de advérbios de lugar como “aqui”, “ali” acentuam a presença da repórter na totalidade das cenas narradas. Ela não se coloca apenas como observadora passiva, uma vez que está lá ao lado de Serra, FHC, Aloysio Nunes Ferreira e todos os outros entrevistados e faz questão de deixar isso claro. Como exemplo, temos o fato de, com a afirmação de amigos que Serra adora dançar, Daniela compartilhar sua surpresa com o leitor ao escrever entre travessões “- acreditem- ”.

A partir dessa constatação é possível pensar no papel da autora do texto, da sua construção ao que o seu nome (o nome do autor) transmite para o leitor. Para Michel Foucault, em “O que é o autor”, o nome de autor difere do nome próprio na medida em que assegura uma função classificativa para o texto. As marcas de Daniela estão, além do modo direto, no modo como ela escreve e escolhe a disposição dos fatos.

Essa “função autor”, de Foucault, está muito presente no texto analisado. Ela é um objeto de apropriação, uma marca de quem escreve e é resultado do tratamento que se dá ao texto. Nesse sentido podemos citar o caráter ácido e, por vezes, irônico que costuma aparecer nos textos de Daniela Pinheiro. Assim, podemos afirmar que o texto possui a função autor já que pertence a uma unidade de textos de constante valor, tem sua coerência conceitual, faz parte da unidade estilística da autora e, por fim, pertence a um momento histórico específico no qual sua autora também está inserida.

Conclusão

Em “Na hora da decisão: José Serra”, Daniela respeita a fonte ao não publicar o que foi falado no avião com Serra. Ele fala sobre a sua relação e opinião sobre Alckmin (p. 222). Mesmo assim, a autora narra o começo da conversa, quando Serra falou “com sarcasmo que Alckmin tinha direito a ser governador”, deixando no ar o que pode ter sido dito na meia hora seguinte. Noutro trecho, a jornalista é bastante sagaz quando o coloca na parede a respeito de afirmações supostamente ditas por Serra e negadas por ele. São nessas e noutras que Daniela não deixa dúvidas do que ela quer passar para o leitor, essa figura cabeça dura e implicante que viria a ser candidato a presidente do Brasil.

A relevância de uma revista tão respeitada como a Piauí ter publicado tal perfil nada imparcial às vésperas de uma disputa presidencial não é pequena. A revista nunca propôs a imparcialidade, portanto cumpre seu papel de mostrar um olhar crítico do que se propõe a falar para o seu leitor. Esse, que lê a Piauí, já espera a visão detalhada, crítica e bem humorada que é frequente na publicação. Portanto, é certo dizer que, se há um pacto entre o quem lê e quem produz conteúdo, esse pacto não foi quebrado no que se refere ao estilo irreverente do perfil de José Serra.

Por Gabriela Sarmento e Sofia Mendes


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