As armas e os varões: a formação de Dilma Rousseff

dilma

O ano de 2009 já anunciava mudanças. Na política, o cenário para a eleição de 2010 começava a se desenhar. Os principais candidatos à presidência eram Dilma Rousseff – que comandava o Ministério de Minas e Energia- pelo Partido dos Trabalhadores (PT), José Serra, disputando indicação com Aécio Neves pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)e Marina Silva, filiada ao Partido Verde (PV).

Em outubro de 2010 Dilma Rousseff foi eleita. O Brasil seria comandado, pela primeira vez, por uma mulher.

O texto em análise foi escrito por Luiz Maklouf Carvalho, no início de abril de 2009, e originalmente publicado da edição 31 da revista piauí, disponível apenas para assinantes no link http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-31/vultos-da-republica/as-armas-e-os-varoes. Hoje, o texto de Carvalho é encontrado também nas páginas do livro Vultos da República – Os melhores perfis políticos da revista Piauí, da editora Companhia das Letras,  entre as páginas 119 e 138.

A CONSTRUÇÃO DO TEXTO

Como todo perfil, esse texto também é um enfoque, um recorte sobre a personalidade e história da personagem. No caso em questão, o destaque de Carvalho já nos é colocado de imediato pela escolha de seu título As armas e os varões: a formação de Dilma Rousseff.

Com isso, o autor faz um recorte claro e preciso: ele não vai falar da atuação de Dilma como ministra, essa não é sua proposta. O que será tratado é a formação política de Dilma durante sua juventude em um contexto histórico de ditadura e em um ambiente político dominado por figuras masculinas.

Nesse sentido, as fontes ouvidas por Carvalho para a composição da personagem são predominantemente masculinas. São cerca de dez os homens, cujos depoimentos compõem a personagem principal, contra apenas três mulheres (uma que inclusive não fala sobre Dilma, mas sim sobre seu marido).

Entramos em contato com a personalidade de Dilma por meio de falas dos homens de sua vida, como o irmão, o primeiro namorado, o marido, os colegas de militância. Já sua história nos é dada por meio de histórias contadas ou vividas também por homens. O perfil é sobre Dilma, mas ela pouco protagoniza ou é sujeito das ações da narrativa, e isso tem um motivo.

O texto começa com a descrição do pai de Dilma. Em poucas linhas, temos informações essenciais para já começar a compor uma imagem do personagem em nossas cabeças. Búlgaro, com uma aparência que devia chamar atenção, comunista, advogado, imigrante no Brasil, viúvo, bom de negócios.

A figura da mãe de Dilma, que aparece logo depois no texto (e não terá a menor relevância) é introduzida pelos olhos do pai de Dilma. Quem se “encantou” foi Pedro Rousseff em relação a ela. Dilma Jane Silva não é sujeito da ação, sabemos previamente onde ela nasceu e cresceu, mas nenhum traço de sua personalidade, diferente do que acontece com Pedro. Isso faz sentido na proposta do texto nos contar algo sobre Dilma por meio de figuras masculinas, os varões.

Dessa forma, esse padrão vai se repetir ao longo do texto: as outras personagens mulheres também são introduzidas por homens ou definidas por suas relações com homens. Inclusive e principalmente, Dilma.

A primeira reprodução direta de um depoimento no texto, com o uso de aspas, é uma fala do irmão da personagem, Igor, sobre sua mãe. O conteúdo das aspas também nos interessa: ele diz que sua mãe era a mulher mais bonita de Uberaba. Poucos parágrafos depois seremos introduzidos à intelectualidade de Dilma (a filha). O autor logo revela algo que será constante nos depoimentos seguintes: a beleza de Dilma (marcante, como a de sua mãe) e sua inteligência.

As primeiras aspas sobre a personagem de fato também é de seu irmão, quando ele se refere a ela como “Dilminha”. O uso do diminutivo pode ser entendido de várias maneiras. Além de diferenciar a Dilma filha da Dilma mãe, também releva um laço afetivo entre os dois irmãos, ao mesmo tempo em que infantiliza a protagonista do perfil. Tudo isso pode provocar no leitor –acostumado com a imagem já em formação de Dilma como “durona” — uma surpresa: para alguns, a Dilma é apenas “Dilminha”.

É muito interessante o movimento narrativo que o autor faz quando ele para de contar a história do pai de Dilma para passar a falar da “personagem principal”. A primeira vez que Dilma é sujeito (no sentido gramatical) de uma ação (“Dilma Rousseff prestou concurso e entrou na Estadual Central em 1965.”) acontece logo depois do autor “matar” o pai no texto, ao descrever os momentos finais da vida de Pedro Rousseff e sua morte em 1962.

Contudo, logo somos introduzidos ao novo personagem masculino que passará a conduzir a narrativa: Carlos Galeno, um importante namorado de Dilma nos anos de militância no Colina (Comando de Libertação Nacional). E qual é a primeira coisa que Galeno nos revela sobre Dilma? “Fiquei encantado com a beleza, a personalidade, e a inteligência de Dilma”. Esses traços: beleza, carisma e personalidade e inteligência intelectualidade vão ser reforçados por vários dos outros depoimentos. Essa é a primeira imagem que o leitor começa a formar de Dilma: uma jovem bonita, inteligente, carismática. Só depois nos são apresentados traços que revelam um lado mais duro, mais “tenente” (contudo, logo de início o leitor entra em contato com a formação militar de Dilma).

Fonte: http://en.mercopress.com/imgs.php/noticias/47635/0x0/dilma.jpg
Fonte: http://en.mercopress.com/imgs.php/noticias/47635/0x0/dilma.jpg

Dilma só dá dois depoimentos sobre si mesma em todo o perfil. O primeiro deles é sobre o momento que Carlos Araújo, que viria a ser seu marido, pediu sua mão em casamento a outro homem, Juarez. A segunda fala de Dilma é sobre um episódio em que ela e uma colega tiveram que esconder as armas do grupo. Retornamos ao título do perfil: as armas e os varões.

A imagem de uma Dilma forte, séria, “nada chorona”, “um tenente” só nos é introduzida quando o autor narra o momento no qual ela é presa e passa a ser torturada. A tortura é descrita de forma fria e se atém aos fatos, sem apelar para o emocional. Dilma não depõe sobre esse momento de sua vida no texto, ao contrário de Araújo, que conta ao jornalista como foi difícil ser torturado e como ele queria se matar. A escolha de construção textual sobre esse episódio pode ser considerada por mais de um fator. O autor pode nos estar mostrando como a própria Dilma enxergou a tortura, com frieza, força, seriedade. Pode contribuir para compor a imagem de “gerentona”, principalmente com o seguinte depoimento, de Leslie Besloque: “Ficar presa com a Dilma foi uma coisa de doido. Ela não era nada chorona. Falávamos como se não tivesse tortura. A Dilma é um tenente, muito forte”.

O texto termina no tempo “presente”, no apartamento de Araújo, com uma descrição rica que nos transporta àquele momento. É quase como se estivéssemos assistindo àquela cena junto com Carvalho. Acaba com uma figura de Dilma do passado, vista pelos olhos de Araújo, aquela Dilma dedicada, mulher, que visitou e cuidou do marido preso, mesmo ela própria já tendo sido presa e torturada.

É simplista assumir que o texto fala sob uma perspectiva machista. A escolha do autor de construir o perfil de Dilma com base nas falas e histórias de homens de sua vida enquadra-se na proposta narrativa dada logo de início pelo título do perfil. Essa escolha faz ainda mais sentimos quando se pensa na política brasileira, marcada pela figura paternalista encarnada em diversos homens ao logo da história. A forma do texto, além de seu conteúdo, nos transporta e nos faz experienciar em outro nível a personalidade e a vivência de Dilma. Somos transportados para o que Dilma talvez tenha vivenciado como uma mulher –bonita– no mundo da política, dominado por “varões”, sendo definida por eles, julgada pela sua beleza (não é à toa o número de depoimentos que julgam a aparência física de Dilma), em constante necessidade de se provar igual.

É como se o leitor tivesse a possibilidade de conhecer Dilma não só pelo conteúdo escrito sobre ela, mas também pela própria forma do texto, que raramente lhe dá voz e que se vale de depoimentos que exprimem juízos de valor sobre ela. A forma do texto casa com seu conteúdo.

E, talvez, em alguma esfera, o final do perfil (que descreve a dedicação de Dilma para com Araújo enquanto ele estava preso, lembranças da cadeia e o presente de Araújo, cuidado pela empregada, em um apartamento confortável, “muito feliz”, vendo duas televisões) com a frase: “Quantas vezes a Dilma foi lá me visitar…” coloque Dilma no protagonismo. Enquanto Araújo está em casa vendo TV, ela está caminhando para o auge de sua vida pública.

ANÁLISE DE CONTEÚDO

  1. Estrutura narrativa

O foco narrativo do texto é mantido em terceira pessoa, embora o autor se transforme em personagem da ação narrada com alguma constância. É deixado claro que o narrador é o jornalista que entrevista as testemunhas que compõem o perfil.

Na entrevista de 2003, Dilma me contou o que as duas fizeram: (…). (p.133)

Tal como em um texto etnográfico, o autor procura legitimar a confiabilidade dos dados coletados durante as entrevistas pela extensão da descrição dos fatos. Em várias oportunidades, ele busca mostrar que “esteve lá”. A capacidade de Carvalho nos fazer levar a sério o que ele relatou ao longo de todo o texto é relativa ao convencimento de que ele visitou a essas pessoas, conversou com elas, agrupou informações reais e pertinentes, tendo contato real com cada um dos indivíduos citados. Mas percebe-se em alguns trechos que isso não necessariamente ocorreu. Por lançar mão constantemente dessa visão narrador-personagem, Carvalho acaba deixando a impressão de que entrevistou todas as personagens, inclusive as que não teve, de fato, nenhum contato.

“O pon está na mesa”. Pétar Russév não conseguia dizer “pão”. Falava pon. (p.119)

A escrita, em si, é a real responsável pela sensação de “estar lá”, ainda que ele, de fato, não estivesse, como ressaltado no livro Obras e Vidas, de Clifford Geertz (p. 15).

No entanto, ainda que a presença do autor na cena esteja evidente, o ângulo de vista do narrador não se restringe àquela ambientação e a narrativa retoma como se a história estivesse sendo contada impessoalmente. O olhar do autor presente na cena não revela sentimentos pontuais do narrador com alguma ação ocorrida. Em nenhum momento Maklouf Carvalho revela julgamentos de valor ou experimentações (isso se comprova pela não-manifestação do repórter em cena). O narrador-personagem tem por função mostrar características marcantes das personagens. Ou apontar a situação privilegiada e ousada do entrevistador em sua investigação, quando convém.

Fonte: http://24horasnews.com.br/files/imagens_noticias/dilma-reitera-apuracao-rigorosa-das-denuncias-de-corrupcao-na-petrobras.jpg
Fonte: http://24horasnews.com.br/files/imagens_noticias/dilma-reitera-apuracao-rigorosa-das-denuncias-de-corrupcao-na-petrobras.jpg

“Fiquei encantado com a beleza, a personalidade e a inteligência de Dilma”, disse-me ele no restaurante de um hotel em Belo Horizonte. (p.122)

“A enxurrada de mineiros deixou a gente louco, porque simplesmente não havia infraestrutura para cuidar de todo mundo”, contou Maria do Carmo no terraço de seu apartamento, no bairro carioca das Laranjeiras. (p.128)

“O Carlos era muito sedutor”, disse Vânia em seu apartamento de cobertura em Copacabana. (p.129)

  1. Estrutura descritiva

Maklouf Carvalho evita descrever a personagem central por seus olhares. Primeiro, dá cor aos traços de Dilma por inúmeras outras personagens, alternando as descrições feitas pelas testemunhas antes de apresentar pessoalmente a própria. Apesar de o foco narrativo não estar em primeira pessoa, a sensação do autor sempre presente em cena se dá também por essa estrutura do texto, em que há a descrição da reação e dos gestos das personagens enquanto respondem ao questionamento.

Perguntei se eram amigos a ponto de ter o celular pessoal da ministra. “Mesmo que tivesse, não te diria”, respondeu Galeno, um pouco irritado. (p.129)

Galeno ficou encabulado quando perguntei detalhes sobre o início do namoro. “Nos apaixonamos mutuamente e tivemos um namoro intenso”, resumiu. (p.122)

O autor busca circundar a personagem principal através de várias fontes, antes de conceder sua voz de fato. Talvez esse fato tenha se dado em razão da mínima exposição de seu histórico à imprensa na época (ou da prudência em revelá-lo), já que se tratava de uma ministra sendo lançada como candidata à presidência. Todo o traçado de sua formação teve de ser extraída de coadjuvantes que tenham convivido com Dilma em sua juventude, ressaltando aspectos de descrição como inteligência, personalidade e beleza. No capítulo seguinte, sobre Dilma Rousseff como alto escalão do governo, por exemplo, as características abordadas se referem mais à sua eficiência, seu modo de trabalhar e sua postura como ministra.

Por Guilherme Caetano, Isabel Seta e Thais Bellotto

Deixe um comentário